quarta-feira, abril 23, 2008

Cenários geopolíticos no Oriente Médio

Apesar da dinâmica e do entrelaçamento dessas questões, que têm ainda como pano de fundo o interesse internacional nas enormes reservas petrolíferas dos países do Golfo Pérsico e o avanço do extremismo islâmico, pode-se tentar levantar alguns pontos que, ao que tudo indica, deverão ter continuidade nos próximos anos.O primeiro deles é que os Estados Unidos continuarão a ser a potência com mais influência na região. Todavia, ela será menor do que já foi no passado, pois as políticas e estratégias norte-americanas para a região serão cada vez mais contestadas por outros atores da cena internacional, como a União Européia, a Rússia e a China.O segundo é que o Irã parece cada vez mais se firmar como um dos Estados mais poderosos da região em virtude não só da riqueza fornecida pelo petróleo, mas também porque sua influência tem se fortalecido no Iraque e junto a grupos como o Hezbollah libanês e o Hamas palestino.Já Israel, uma outra potência regional, tem dois grandes trunfos: o incondicional apoio dos sucessivos governos dos Estados Unidos e a posse de um arsenal nuclear. No entanto, continua sendo um “corpo estranho” numa região dominantemente árabe-muçulmana e não tem conseguido equacionar as relações com seus vizinhos árabes e muito menos buscar soluções satisfatórias com a população palestina. Esta situação representa um grande obstáculo para que se estabeleça um processo duradouro de paz na região.Por outro lado, a situação do Iraque deverá permanecer caótica pelo menos nos próximos anos, o terrorismo continuará atuante na região e o Islã persistirá preenchendo o vazio político deixado pelo fracasso de modelos sócios econômicos ocidentais implementados sem sucesso por alguns dos governos de países da região. De maneira geral, os regimes dos países árabes continuaram mantendo-se com grande grau de autoritarismo.Sob o ângulo econômico o petróleo, principal matéria-prima energética extraída na região, continuará apresentando preços cada vez mais elevados e, paradoxalmente, o comércio intra-regional permanecerá praticamente com pouca expressão.


A revolução interrompida Martin Luther King pronunciou essas palavras há 40 anos, naquele que foi seu último discurso. Menos de 24 horas depois, no 4 de abril de 1968, o homem que tinha um sonho tombava morto, alvejado a tiros na sacada de um hotel modesto de Memphis, no Tennessee. Semanas atrás, outro discurso, sobre o mesmo tema, pronunciado por Barack Obama, evidenciou a distância que ainda separa a nação americana da “terra prometida”. Obama homenageou King, mas o discurso mais importante de sua campanha presidencial, talvez de sua vida, nasceu de uma imposição, não de uma opção. Dias antes, o pastor negro de sua igreja, que foi seu confessor, oficiou seu casamento e batizou seus filhos, amaldiçoara os Estados Unidos como uma “nação racista”. O candidato precisava reagir a um escândalo – e escolheu o caminho mais digno. No lugar de apenas se dissociar de uma maldição revestida de amargura e rancor, ofereceu um balanço do “impasse racial no qual estamos presos há muitos anos”. A peça, elegante e pungente, é uma crítica devastadora às políticas de raça.O “povo” de King não eram os negros, ou “afro-americanos”, na linguagem do culturalismo essencialista, mas a nação americana inteira. O seu sonho, “profundamente enraizado no sonho americano”, era uma visão pós-racial, expressa na esperança de que “meus quatro pequenos filhos viverão um dia numa nação na qual não serão julgados pela cor da sua pele mas pelo conteúdo de seu caráter”. A revolução que ele personificou foi interrompida pelos arautos do multiculturalismo, que rodearam a crença nas raças com as paliçadas defensivas das políticas de preferências raciais. A inversão do sinal sustentou a velha equação que faz cada um ser julgado pela cor da sua pele.Gueto, mais que a segregação urbana dos “diferentes”, é o círculo de giz pelo qual se delimitam linguagens, culturas, políticas. O racismo americano produziu um país pontilhado de guetos. Após a morte de King, a reação multiculturalista triunfante coloriu os muros dos guetos, consagrou a separação como um ideal e carimbou os negros com o rótulo “afro-americanos”, que quase significa “estrangeiros”. Nas universidades, junto com as cotas raciais, formaram-se guetos intelectuais devotados à celebração de supostas diferenças culturais essenciais. No interior do Partido Democrata, cristalizou-se um gueto político organizado sobre a plataforma das preferências de raça que almeja converter os negros em vasta clientela eleitoral. Os racialistas brasileiros adaptam como podem os dogmas formulados nesses dois guetos.No seu discurso mais célebre, de 28 de agosto de 1963, King invocou a promessa de igualdade da Declaração de Independência. A mesma invocação inicia e conclui o discurso recente de Obama, cuja candidatura nasceu como negação da negação multiculturalista e como retomada do fio partido há 40 anos. O tear do qual emana esse fio é a Revolução Americana, que ainda não cumpriu integralmente sua promessa fundadora.A identidade dos Estados Unidos construiu-se sobre uma tensão de fundo entre aquela promessa e a concepção multiculturalista do melting-pot, que é o caldo constitutivo da nação. No melting-pot, os componentes do povo vivem juntos, no mesmo território e sob o mesmo governo, sem jamais se misturarem efetivamente. A noção de mestiçagem, como intercâmbio biológico e cultural criador, não tem lugar nesse conceito que celebra os muros e abomina as pontes. A novidade de Obama está na descoberta da mestiçagem como antídoto contra o multiculturalismo.Há fissuras reais no mundo dos estamentos “raciais” americanos. O censo dos EUA, ao contrário do brasileiro, não inclui nenhuma categoria destinada a abrigar mestiços. Mas os imigrantes latinos têm dificuldades em se descrever segundo categorias raciais rígidas e, nos censos de 1990 e 2000, mais de 40% deles escolheram a opção “Alguma Outra Raça”, prevista apenas para acomodar insignificâncias estatísticas. Esse ato de subversão da lógica censitária, que ameaça implodir a consistência das séries históricas, representa a introdução de um imaginário de mestiçagem na caixa de vidro das raças. A caixa de vidro experimenta outras marteladas. Há um ano, a Suprema Corte declarou inconstitucionais as políticas educacionais baseadas em cotas raciais e o juiz Anthony Kennedy associou uma indagação incomum a um protesto inesperado: “Quem exatamente é branco e quem é não-branco? Ser forçado a viver sob um rótulo racial oficial é inconsistente com a dignidade dos indivíduos na nossa sociedade.” Nos últimos meses, centenas de milhares de jovens, negros e brancos, revelaram-se fartos das políticas de raça ao acorrerem em massa aos comícios gigantescos de Obama. “Sou o filho de um homem negro do Quênia e de uma mulher branca de Kansas. (...) Sou casado com uma americana negra que carrega dentro dela o sangue de escravos e proprietários de escravos – uma herança que transmitimos a nossas duas preciosas filhas. (...) É uma história que marcou a minha personalidade genética com a idéia de que essa nação é mais que a soma de suas partes – que, a partir de tantos, somos verdadeiramente um.” Obama é um mestiço, palavra que não encontra correspondência rigorosa na língua inglesa. A sua ancestralidade genética não é tão incomum entre os americanos e, em si mesma, carece de significado político. A singularidade relevante encontra-se na sua visão da mestiçagem como ponte entre King e a Declaração de Independência e como inspiração para a reinvenção da identidade americana.
Demétrio Magnoli

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